A minha avó sempre foi uma senhora cheia de vida. Lembro-me dela a limpar a casa às sextas-feiras e aos sábados lavava os balcões junto com o meu avô. Lembro-me de acordar ao sábado com o barulho da água da mangueira do lado de fora da minha janela do quarto. Lembro-me dela a chamar-me para casa porque não gostava que eu brincasse no balcão da nossa vizinha da frente (com quem tinha brigado alguns anos antes de eu nascer!), mas eles tinham os pilares que eu precisava para jogar ao elástico e sempre me receberam bem... Lembro-me dela ralhar comigo quando levava as minhas amigas para brincarmos lá em casa e mexíamos nas jóias dela... Lembro-me dela costurar na máquina de costura e fazer roupinhas para as minhas bonecas (ela ainda tentou ensinar-me, mas não cheguei lá!)... Lembro-me dela fazer desfeito pelo Natal, uma iguaria tradicional que eu adoro, mas que não me lembro de ter comido tão bem como comia o dela. Lembro-me dela a estender roupa (ponha as molas da cor da roupa que estava a estender!), lembro-me dela a fazer remendos nas roupas e os dela ficavam sempre tão certinhos, porque se ficassem tortos, ela desmanchava e voltava a fazer (era demasiado perfecionista!)... Lembro-me que ela só gostava de nomes próprios que fossem esquisitos (mesmo!!! Quem sabe o nome do meu pai, tio e tias sabem do que falo!)... Lembro-me dela falar bem dos médicos "que eram perfeitos" (bonitos!)... Lembro-me da letra dela, perfeitinha! Lembro-me dela ir com o meu avô na camioneta passear para as festas, quando ele fazia as carreiras esporádicas. Lembro-me de vê-la a chorar pelas filhas, pelos pais, como se eles tivessem morrido ontem... Lembro-me dela falar da minha tia Dídia, de quem tinha um quadro na sala vestidinha de Menino Jesus de Praga, com os seus 5 anos. Nunca cheguei a conhecê-la, pois morreu muito antes de eu nascer, ela tinha 5 anos (o meu pai, que é o irmão mais velho, tinha 15, salvo o erro!) quando morreu num acidente, mas pelo tanto que ouvi falar dela, guardo-a no meu coração desde sempre. Apesar disso, a minha avó era bem disposta. Sorria muito (às vezes até mesmo quando não devia!)... Apesar da vida ter sido madrasta com ela por várias vezes, ela sempre deu a volta por cima e sempre mostrou a sua personalidade forte (às vezes demasiado forte e inconveniente!). Ela adorava a família real britânica (tinha inclusive uma foto deles na cómoda, como se fossem parte da família), a morte da princesa Diana foi uma tragédia familiar para ela. Ela também adorava ver telenovelas brasileiras (nisto saio a ela!) e sabia, ou procurava saber, os nomes verdadeiros dos atores de quem gostava. Ela falava com toda a gente, sorria muito (ah isso eu já disse!), adorava passear (enquanto o meu avô foi vivo, viajaram muito juntos, pelo mundo todo e lembro-me dela vir com caderninhos anotados de tudo o que tinha acontecido em todos os dias da viagem!), mesmo já para o fim, não podendo muito, ela lá ia dando as suas voltinhas pela cidade, ao Pirolito, onde fazia compras... e ela andou muito! Lembro-me dos beijos repenicados dela. Eram sempre muitos, sequinhos e seguidos uns dos outros e muito (mesmo muito!) repenicados que, às vezes, até fazia ricochete com o ouvido... De todas as vezes que ia ao hospital fazer algo havia sempre uma enfermeira de quem ela não gostava, ou a companheira de quarto, alguém. Havia sempre alguém que não lhe enchia as medidas. E ela refilava! Mas essa era a minha avó, com o seu feitio e personalidade!
Entretanto, a idade foi-lhe causando uns desequilíbrios, caia com frequência, e começou a ser um perigo para ela própria vivendo sozinha em casa. Está num Lar há 8 anos. No início ainda andava de um lado para o outro, mas sempre preferiu ficar sentada na conversa e a ver TV. No início todos os domingos juntávamo-nos em casa dos meus pais, mas à medida que a mobilidade lhe foi faltando, foi ficando cada vez mais complicado levá-la para casa. Ela fugiu o quanto pode de usar bengala... Mas levou a bengala, o andarilho e, finalmente, a cadeira de rodas... E sempre que ia vê-la ao Lar, a visita raramente era curta, pois quando dizia que ia embora, ela pedia para ficar sempre mais um bocadinho. E lá ficava ela falando, falando, falando... Parecia que tinha de gastar todas as palavras que estavam acumuladas... Essa era a minha avó!
Deitada numa cama de hospital, sem uma das suas pernas, passava o seu tempo a olhar para nós, ou para o infinito. Não vejo nada no seu olhar, apenas o vazio. O vazio de uma vida que ela viveu em pleno, que foi feliz, mas que também teve tudo para ser triste, mas ela fez a sua escolha: viver, ser feliz enquanto pode! Hoje somos nós que a alimentamos. O seu organismo responde positivamente, mas o olhar dela não. Pouco fala. Mesmo que puxe por ela, ela praticamente não reage, ou não quer reagir. Mostro-lhe fotografias da minha M. (que ela chamava sempre "querida, querida menina") e ela sorri. Falo-lhe de situações do passado e ela sorri. Deve gostar de se lembrar o quanto foi feliz. Mas, além disso, não reage a mais nada. Está ali... Não tem objetivos ou metas. Não tem alegria. Não tem vontade de viver! Olha-nos simplesmente... Não tem vida no olhar. Aquela mulher de quem vos falei no início deste texto já não existe. Existe apenas o corpo vivo, um corpo que reage internamente, porque fisicamente até para levantar um braço somos nós que o fazemos. A sua essência já não vive. E sabem que mais?! É muito triste!!!! Eu tenho saudades de ouvir a tagarela da minha avó, mesmo que seja para dizer coisas descabidas!... (Nunca pensei que um dia fosse dizer isto!)
E andam praí uns caramelos a queixarem-se da própria vida (sem sequer olharem para o lado! Egoístas!!!) e outros a brigarem por coisas sem tarelo?! Olhem-se ao espelho e imaginem-se assim, tal como a minha avó está! Será que vale a pena tanta briga por tão pouco?! Vivam em amor e paz, enquanto a saúde não vos faltar... Que se lixe o dinheiro, o orgulho e o rancor! Não vale a pena!
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